O que você perderá com a privatização da SABESP
Quem explica é o historiador Antônio da Silva, o Ceará*, diretor de base do Sintaema (Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo)
19 maio 2023, 18:08 Tempo de leitura: 9 minutos, 54 segundospor Paula Veneroso
Antes de conferirmos o que o Ceará tem a dizer, vejamos alguns números que ajudam a dimensionar a grandeza da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, empresa cuja missão é “Promover a saúde pública”, e que completa 50 anos em 2023:
- É a maior empresa de saneamento da América Latina;
- É a 5ª maior empresa de saneamento do mundo;
- Atua em 375 municípios do Estado de SP;
- Leva água e afasta esgoto de 28 milhões de pessoas;
- Obteve lucro de R$ 3 bilhões em 2022, aferido no último trimestre;
- Respondeu, em 2022, por 35% de todo o montante investido em saneamento no País;
- Vale cerca de R$ 40 bilhões, cerca de 15% do orçamento do Estado;
- 56% da população de São Paulo é contra a privatização da Sabesp.
O que é a Sabesp?
Os números acima falam por si. Quinta maior do mundo em saneamento, é uma empresa de economia mista, na qual o governo do estado é sócio majoritário, detendo 51% das ações (os outros 49% estão distribuídos em ações na Bovespa e na Bolsa de Nova York). A gestão da empresa, porém, não é compartilhada, o presidente da companhia é indicado pelo governo, e a diretoria atual trouxe muita gente de empresas privadas, com clara vocação para privatizar. O que é um paradoxo, já que a Sabesp é uma empresa lucrativa, com excelente saúde financeira: seu lucro foi de 3 bilhões de reais em 2022, aferido no último trimestre.
Quais as áreas de atuação da empresa?
Em meio século de existência, a Sabesp construiu um know-how muito grande na área de saneamento, e hoje ela exporta processos e tecnologias desenvolvidos ao longo do tempo por meio do conhecimento prático e teórico dos seus trabalhadores. No Brasil, quase não existia saneamento entre os anos 1960 e 70, área que se desenvolveu por meio do conhecimento prático. E a prática foi criando teorias, ao passo que a empresa foi-se modernizando até chegar a essa grande potência que é hoje. A Sabesp tem migrado de negócios, incluindo a participação em outras empresas ligadas às áreas de saneamento e meio ambiente. Mantém parcerias de intercâmbio de tecnologia com países como Japão e Alemanha, e com universidades públicas. No auge da crise hídrica, prestou assessoria a municípios em que não opera como Itu. Em Barueri, por exemplo, tem uma parceria com a Attend Ambiental no pré-tratamento de esgoto químico pesado, de indústrias, que é um pré-tratamento antes dos resíduos líquidos chegarem à estação. A Sabesp tem expandido muito seus negócios.
Como a Sabesp funciona nas cidades?
Funciona por contratos de concessão com as prefeituras, com mínimo de 20 anos de duração. Para cada cidade, a Sabesp estipula metas de investimentos, adequando-se ao plano diretor. Ao término do contrato, ambas as partes têm a opção de não renovar. Da parte da Sabesp, nunca houve nenhuma desistência nesses 50 anos.
O que, efetivamente, a população de SP ganharia com a privatização da Sabesp?
Eu entendo que não ganharia nada. E que, aliás, perderia. A exemplo da Enel, empresa privada de energia, pergunto: qual é o controle que o Estado – e a população – tem sobre a tarifa? Quais são os canais disponíveis para reclamações por falta e/ou queda de energia, recorrentes hoje em dia? Com a privatização da Sabesp, perderemos canais de acesso à empresa, direito a tarifas sociais, qualidade de tratamento da água, qualidade no tratamento do esgoto. Acredito que todos os serviços públicos devem ser mantidos pelo Estado, principalmente o saneamento, que é muito caro. Não podemos nos esquecer da crise hídrica de 2013, quando a Sabesp, além de bombear água do volume morto do rio Atibainha, construiu, em tempo recorde, a Estação São Lourenço, em Cotia, que atende 3,5 milhões de pessoas e desafogou o sistema Cantareira. Essa obra custou R$ 6,5 bilhões e só foi concluída rapidamente porque a Sabesp é uma empresa estatal.
Em quais cidades a privatização do saneamento básico deu certo?
Exemplos mundiais mostram que a privatização do saneamento não deu certo. Veja o caso de Manaus (AM), que tem a maior bacia de água doce do mundo, mas onde apenas 23% da população tem acesso à água tratada e ao esgoto coletado, além de cobrar a tarifa mais cara do País. Lá, o saneamento foi privatizado há cerca de 20 anos. Na Europa, 276 cidades reestatizaram o saneamento, o que prova mais uma vez que estamos indo na contramão da História.
Alguns dizem que a privatização vai desafogar os cofres públicos do Estado…
O que vale a Sabesp? Quarenta bilhões de reais, cerca de 15% do orçamento do Estado. O que isso vai refrescar os cofres do estado? A privatização da Sabesp é um crime contra a saúde pública do Estado de SP. O que está por trás da privatização da Sabesp é, na verdade, o controle social da água. Porque o marco regulatório prevê que água se transforme numa commodity. Que sejam negociadas cotas de água no mercado financeiro. E água é vida, não é mercadoria, é um produto escasso e finito.
Qual seria então a motivação do Governo do Estado em privatizar uma empresa lucrativa e eficiente?
Diante dos números citados no início, é impossível entender essa lógica de privatização do governo, já que o processo de privatização de estatais no Brasil teve início a partir da constatação de que determinadas empresas eram deficitárias e ineficientes, com a expectativa de que a entidade privada que as adquirisse melhoraria os serviços prestados. Na prática, no entanto, nenhuma privatização acarretou melhora nos serviços. Todos os serviços privatizados no Brasil pioraram, a exemplo de tragédias como as ocorridas em Brumadinho e Mariana (MG), que foram resultados de privatizações.
A luta de sindicatos como o SINTAEMA contra a privatização é antiga. O que vocês vêm fazendo?
Nos últimos trinta anos, vários governos aventaram essa hipótese. Estamos na luta desde 1998, pelo menos, quando o Sintaema passou a criar estratégias de resistência para barrar a privatização, mas o caminho para a privatização da Sabesp vem sendo bem pavimentado: primeiro, com a mudança do marco regulatório – a Sabesp atua com uma política social importantíssima que é o subsídio cruzado, em que se retira dinheiro do município que dá lucro e investe nos que não dão lucro para se atingir a universalização do serviço.
Como o fim do subsídio cruzado impactaria as cidades?
Ao ser reeditado pelo governo Bolsonaro, o marco regulatório desobrigou as empresas de saneamento a praticar o subsídio cruzado. São Paulo representa 40% da receita da Sabesp, e, numa privatização, os mais de 100 municípios sustentados pelo lucro de SP deixarão de ter o serviço. Os municípios pequenos que são considerados deficitários não terão mais a água tratada e nem o esgoto coletado.
Quais seriam os riscos que a privatização da Sabesp acarretaria à população?
Além da acabar com a tarifa social e de termos aumento de tarifa, corremos o risco da volta de doenças de veiculação hídrica como diarreia, coqueluche, difteria, febre tifoide, males que foram erradicados com o saneamento. Estudo da OMS indica que cada dólar investido em saneamento economiza quatro em saúde pública. Cidades que investem em saneamento veem, em poucos anos, diminuir drasticamente os casos de mortalidade infantil. A questão da privatização da Sabesp é de saúde pública, e não apenas de preservar o emprego dos trabalhadores e a rentabilidade da empresa. O legado vai ser destruído e vai haver retrocesso. A Sabesp tem capacidade de investimento e de pagamento, e poucas pessoas serão privilegiadas com a privatização. No final, quem vai pagar a conta são os trabalhadores da empresa e o povo de SP.
E a questão dos royalties que a Sabesp paga a algumas cidades pelo número de ligações? Como ficariam com a privatização?
Provavelmente seriam extintos. Existem algumas cidades no Estado de SP que, por cláusulas contratuais, recebem royalties anuais da Sabesp pelo número de ligações, entre elas estão a capital, Osasco, Barueri e São Bernardo do Campo, por exemplo. A cidade de São Paulo recebe de volta entre 600 e 700 milhões de reais por ano, e esse repasse vai para um fundo, coordenado pela Secretaria de Habitação, para ser utilizado em regularizações fundiárias de ocupações. A companhia também tem o compromisso de investir R$ 1,7 bi até o final do contrato com a cidade de SP. Isso porque a Sabesp é proibida – por TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) assinado com o Ministério Público – de fazer qualquer ligação de água em propriedades que não estejam regularizadas pela prefeitura dos municípios.
Qual a situação do contrato de Osasco com a Sabesp?
O contrato de Osasco com a Sabesp foi firmado em 1999 e tem duração de trinta anos. A prefeitura da cidade sempre elogiou os serviços prestados, pois, quando a Sabesp assumiu, a rede de água de Osasco apresentava muitos vazamentos e havia enorme extensão de rede antiga, de amianto, material altamente cancerígeno. Os royalties sempre foram importantes para a cidade, principalmente para modernizar a rede.
E quais ações o Sintaema vem tomando para deter a privatização?
O Sintaema vem percorrendo as cidades do Estado, tentando conscientizar os prefeitos dos prejuízos que a privatização causará. Hoje, a qualidade da água distribuída pela Sabesp está acima dos padrões mundiais de saúde. Com a privatização, não teremos mais essa certeza. Outra luta do sindicato é pela realização de concursos públicos, a fim de garantir funcionários realmente comprometidos com a empresa, pois a terceirização é maléfica e atingiu em cheio a Sabesp: são trabalhadores em péssimas condições, num serviço mal prestado à população. O último concurso público foi realizado há 10 anos.
A Sabesp recebe muitas críticas pelos serviços prestados à população. Isso se deve à terceirização de alguns serviços?
Hoje a Sabesp tem 12800 trabalhadores efetivos – quando entrei, em 2000, eram quase 19 mil, todos concursados. Hoje, além dos efetivos, há cerca de 20 mil terceirizados. Isso ocorreu após a reforma trabalhista do governo Temer, em 2016, que mudou as regras para terceirização de atividades-fim, como as ofertadas pela Sabesp. Isso deu mais condições de a Sabesp terceirizar atividades imprescindíveis como tratamento de água e esgoto, abastecimento, manobra e operação volante, por exemplo, que estão sendo terceirizadas. Corremos um risco muito grande com essa legalização.
Quem é Ceará, diretor de base do SINTAEMA
Antônio da Silva é historiador, com especialização em Economia e Trabalho, e em Economia e Sindicalismo, pelo Dieese, é pós-graduado pela PUC-SP em História, Sociedade e Cultura. Trabalha na Sabesp há 23 anos, onde atualmente exerce a função de agente de saneamento. Líder estudantil na juventude, aproximou-se do sindicalismo assim que ingressou no mercado de trabalho.
Desde que ingressou no Sintaema já foi diretor de base, de imprensa, secretário geral, e diretor administrativo. Recentemente, voltou a atuar como diretor de base por opção, quando pediu para retornar à empresa. “Acho importante levarmos para os trabalhadores a experiência que adquirimos dentro do sindicato, trabalhando na rua, rodo muitas áreas, mantendo contato com várias frentes”, afirma.